Saturday, February 21, 2009

Capítulo 2

Uma noite agitada. Esse estava sendo o resultado de um dos dias mais tensos da vida de Ricardo. Após a chegada da nave, o restante do dia havia sido um turbilhão de perguntas, relatórios e discussões. O comportamento natural das autoridades que não sabem o que fazer em dada situação é convocar reuniões, na expectativa de que alguém os diga o que deva ser feito. Em cada uma das reuniões realizadas ao longo das últimas 12 horas, Ricardo foi exaustivamente inquirido sobre a situação.


Mesmo após os remédios para dormir, ele rolava de um lado para outro na cama. Mesmo adormecido, murmurava. Sua esposa acordou diversas vezes durante a noite, incomodada com a agitação, mas não fazia idéia do que estava acontecendo no sono de Ricardo.


Ele via a Lua se aproximando, passando de um ponto no céu a uma grande massa cinza que ocupava todo o campo de visão. Na verdade, como veio a perceber, era ele quem estava se aproximando da superfície lunar. Ele se sentia como um fantasma, como se seu corpo não tivesse massa e pudesse viajar livremente pelo espaço.


Ao se aproximar da Lua, despontou no horizonte uma cidade. Uma enorme cidade como ele nunca havia visto. Ela possuía uma arquitetura diferente de tudo que Ricardo conhecia, sem um planejamento aparente, mas extremamente harmoniosa, sem ruas, repleta de torres esguias, que cintilavam contra a escuridão do espaço com uma cor que ele nunca havia sequer imaginado. A cidade era linda.


Enquanto ele se aproximava, fascinado pela que estava vendo, escutou cânticos. Um murmurar baixo, próximo à linha do inaudível, que parecia vir de toda parte da cidade. A língua não era conhecida por ele, não parecia sequer uma língua, mas sim um sibilar cadenciado, quase hipnótico.


Repentinamente, ele sentiu que não estava sozinho. Como se milhares de pessoas tomassem consciência de sua presença ali, Ricardo teve a nítida sensação de estar sendo observado. Mas ele não via ninguém. Apenas sentia os moradores daquele lugar. Em segundos (ou teriam sido horas?), enquanto ainda estava se acostumando com a sensação, ela evoluiu para uma percepção apurada, objetiva, de informações que vagavam pelo ar. Ele via e ouvia fluxos de informações, mas sabia que era mais do que isso. Ver e ouvir não se aplicavam ao que estava acontecendo. Ele simplesmente percebia. Idéias passavam por ele como uma leve brisa, pensamentos faziam zigues zagues coloridos, a cidade era viva de uma forma que Ricardo não conseguia compreender e, posteriormente, nunca conseguiria explicar.


Ainda fascinado pela cidade dos sonhos, um pouco entorpecido pelas novas sensações, ele se aproximou da superfície. Foi quando ele se deu conta que aquilo não era um sonho. Era um pesadelo. As criaturas que vagavam pela cidade incutiram um terror paralisante em Ricardo. Esperando ver pessoas, ele viu seres que pareciam ir contra a ordem natural das coisas. Eram grandes massas cônicas, se arrastando através de pequenos tentáculos que saiam das bases. Por um orifício no topo, quatro tentáculos se contorciam aleatoriamente, dois deles com enormes pinças, os outros dois com terminações ainda mais estranhas, com diversos apêndices.

Apavorado, ele viu em um deque próximo a nave diplomática que havia sido enviada pelo governo. Na porta da nave, avistou uma das criaturas. Ela estava parada na rampa de desembarque do ônibus espacial, encarando Ricardo. Encarando-o sem olhos, encarando-o sem rosto, mas fixamente direcionando sua atenção ao humano que invadia sua cidade. Após minutos de um desespero enlouquecedor, sem conseguir se mover e sentindo o fixo “olhar” da criatura, Ricardo ouviu em sua mente:


- É isso que poderíamos ter sido. É disso que fomos privados!


E acordou.


Já era manhã, Rita já não estava mais na cama. Ele se sentia mais cansado do que quando fora dormir. O horror do pesadelo retornava à mente à medida que despertava completamente. Ele se pôs de pé de forma brusca, olhando em volta e confirmando que estava em seu quarto. Sentiu-se aliviado. Após um rápido banho, foi para a cozinha, onde estava sua esposa.


- Você parece cansado, querido. Não dormiu bem?


- Tive um pesadelo. Um completamente fora da realidade, mas horrível.


- Ainda está impressionado com o que aconteceu ontem. Por que não liga para o serviço e pede um dia de folga para se recompor?


- Acho que farei isso. Afinal, já fiz tudo que um delegado cívico poderia fazer em um caso como esse. Não quero mais nem pensar naquela nave.


Antes da frase acabar, o visio de Ricardo vibrava em cima do balcão da cozinha. O aparelho brilhava com a cor de uma ligação de prioridade máxima. Ele atendeu e praticamente não falou durante os poucos segundos de ligação. Apenas um eventual “sim, senhor” e “claro, senhor”. Voltou com o aparelho para o balcão e disse, com a voz resignada.


- Era o comissário. Querem que eu faça parte de uma segunda missão à Lua. Uma missão militar.

Monday, July 21, 2008

Capítulo 1

O sol brilhava forte naquela manhã, invadindo a sala de controle do espaçoporto Santos Dumont. Os raios de luz atravessavam a espessa camada de vidro sintético verde que cobria as janelas do lugar, fazendo sombras sobra a escrivaninha do operador de controle Jonatas, atrapalhando sua leitura do jornal na tela do monitor. O movimento estava fraco naquela manhã, mas haveria em breve um pouso muito importante e aguardado com ansiedade pela equipe do espaçoporto.

Vários jornalistas se amontoavam na sala de imprensa, à espera de notícias do pouso, mas os agentes do governo presentes no espaçoporto disseram que só se pronunciariam duas horas após a chegada da comitiva vinda da Lua. A missão diplomática havia saído há duas semanas atrás, levando diplomatas, cientistas, e um robô intérprete, rumo à cidade artificial de Nova Brasília, que funcionava na Lua desde 2083. O governo estava preocupado com a situação da cidade: após estranhas tranmissões aparentemente sem sentido, feitas por operadores de sinal não identificados, a estação havia se mantido silenciosa durante um longo tempo, enviando apenas sinais de dados com leituras meteorológicas, índices econômicos e outros dados gerados automaticamente pelos computadores locais. Isso indicava que a estação estava plenamente funcional - eram as pessoas que não entravam em contato porque não queriam.

Depois de inúmeras tentativas de contato, o governo finalmente conseguiu conversar com alguém na estação. Nenhum dos operadores que participaram da transmissão eram registrados no sistema, e falavam fora do padrão de protocolo de comunicação. Usavam linguagem coloquial, ora cheia de gírias e palavrões, ora poética e derivativa, dificultando a comunicação. Com algum custo, um psicólogo e um lingüista do Estado conseguiram estabelecer um diálogo com essas pessoas, e marcaram uma visita da comitiva diplomática, que deveria fazer uma vistoria de rotina fora da data prevista, apenas para entender o que estava acontecendo.

Aparentemente estava tudo bem, mas ninguém tinha certeza de nada. Os estranhos interlocutores não faziam ameaças e nem pediam socorro, mas também não seguiam as ordens e comandos dos operadores na Terra. Isso deixou o governo preocupado apenas o bastante para enviar uma missão de rotina, em busca de respostas. A comitiva só entrou em contato por mensagens de texto, avisando de seu retorno naquela data.

O delegado cívico Ricardo Chang Khor batia os dedos no balcão nervosamente. O tratamento médico a que estava se submetendo para largar o cigarro estava fazendo efeito, mas em dias tensos e nervosos como aquele nem mesmo o implante mensal de trans-nicotina podia evitar a vontade de fumar. Chang liderava a equipe da polícia federativa encarregada de receber a nave da missão diplomática no espaçoporto. Não havia o que temer, ele sabia. Todos sabiam. Mas isso não diminuia sua ansiedade.

Tavez fosse o fato de ter acordado tão cedo depois de uma noite tão curta e mal dormida. Talvez fossem os seus problemas pessoais, que ele, mesmo depois de 20 anos de serviço na força, ainda contemplava durante o expediente, incapaz de separar a vida profissional da pessoal. Pensava na mulher, pensava nos filhos, nas contas, nas despesas, e não raro se pegava questionando sua própria escolha profissional.

Mas não era hora nem lugar de pensar nisso. Precisava arejar a cabeça. Reuniu os policiais subalternos e fez uma revisão do protocolo da operação. Os guardas estranharam tamanha preocupação - mas era fácil para eles, fumantes, manterem as aparências enquanto aguardavam. Era apenas uma nave comum. Apenas mais uma missão diplomática como todas as outras.

Oito e vinte e seis da manhã. O visio tremeu no bolso de Chang, que pegou o aparelho e leu a mensagem vinda da torre de controle: Jonatas o avisava que a nave estava entrando na faixa de controle do radar.

Chang respirou fundo e andou até o meio da sala, onde passou a informação para os outros policiais. Eles começaram a se ajeitar, arrumando as armas nos coldres, e fazendo piadas entre si, despreocupados.

O grupo andou pelo corredor privativo da ala estatal do espaçoporto, até chegar na pequena sala onde se fazia a ligação até a espaçonave. O duto de condução foi conectado na porta pelos robôs operadores, e a porta hermética foi selada. Os sensores de descompressão entraram em contato com a nave, regularizando a pressão dos três ambientes. Tudo corria normalmente.

A porta se abriu. Os policiais esperavam, em silêncio. Nenhum barulho. Nenhum som. Nem mesmo o robô de serviço da nave apareceu. Os policiais começaram a se entre-olhar, e terminaram por olhar para Chang em busca de instruções.

O delegado suspirou, resignado, como se já prevesse que alguma coisa fosse dar errado. Ele só não sabia o que era. Talvez fosse apenas uma porta emperrada. Não era a primeira vez que acontecia.

O grupo entrou no duto de conexão. Chang foi primeiro, seguido de perto por seus quatro colegas. Andaram pela passarela de metal sintético flexível até a porta da nave. Ela não estava emperrada. Estava aberta normalmente.

Não havia robô de bordo, nem piloto nem aeromoça. Apenas uma porta aberta, e uma parede muito suja. O delegado correu para dentro da nave prevendo o pior, mas nada poderia tê-lo preparado para a cena que presenciou. Seu treinamento na academia de polícia jamais teria contemplado uma situação como essa.

Sentados nas primeiras cadeiras do compartimento de passageiros estavam os cadáveres decapitados de todos os integrantes da missão diplomática. No colo de cada corpo, a respectiva cabeça, todas com expressões de dor e terror, congeladas na carne pelo rigor mortis. O cheiro de carne podre invadiu as narinas dos policiais, que começaram a passar mal. Dois deles se afastaram e começaram a vomitar no corredor da nave.

Chang se aproximou do corpo do chefe do corpo diplomático. Contrariando as regras, mexeu na cena do crime, arrancando de dentro da boca da cabeça decepada um pedaço de papel sujo de sangue. Era uma nota escrita com caligrafia impecável:

"Para vocês, a lua é apenas uma pedra gigante voando ao redor de suas cabeças - um amontoado de matéria-prima pronta para ser explorada. Terras infinitas para o plantio de soja, e minas de ferro a preços módicos. Mas a Lua é muito mais do que isso. Não adianta enviarem advogados, médicos, engenheiros, políticos. Nenhum deles pode compreender. Da próxima vez, enviem um poeta." O bilhete não tinha assinatura.

Ricardo Chang Khor manteve o olhar fixo no bilhete que acabara de ler. Estendeu a mão aberta em direção ao policial que estava mais perto dele.

- Luís... Me dá um cigarro.